Reencontrando Paulo Freire

21/03/2021 12:35

Nesta semana, inicia-se o Ciclo intitulado “Diálogos Im-Pertinentes no PPGECT”, do qual estou participando da organização. E o primeiro Diálogos tem como convidados os profs. Walter Kohan e Demétrio Delizoicov a falarem sobre Paulo Freir,. cujo centenário de nascimento se comemora neste ano. Para tal, nos últimos dias, tive o prazer de me debruçar sobre o livro de Walter, “Paulo Freire, mais do que nunca: uma biografia filosófica”. Esta leitura propiciou-me um reencontro muito emocionado com Paulo Freire e comigo mesmo. Eis o texto que surgiu desse reencontro, a partir do encontro com o livro de Walter. 

Paulo Freire, desde sempre. Ciência mais do que nunca! Uma pequena nota autobiográfica.

Henrique César da Silva

No final da década de 1980, entrei no bacharelado em Física na Unicamp. A Física, uma paixão, a primeira grande escolha em realização. Mas outras duas paixões seguiam paralelas pelas minhas escrivaninhas e pelas minha estantes de livros comprados em sebos ou emprestados de bibliotecas públicas: a filosofia e a política. Minha leitura e meu estudo paralelos mais apaixonantes na época: Althusser. 

Lá pelo segundo ano do curso, tinha 18, 19 anos, e estava procurando uma trajetória de vida que compusesse minhas paixões. Resolvi cursar,  ainda como disciplina eletiva do meu bacharelado, uma disciplina da Educação, da licenciatura.  Era conhecida como Estrufunc, ou Estrutura e Funcionamento da Educação Escolar.  Conheci ali autores como Bárbara Freitag, Dermeval Saviani, Maurício Tragtemberg, Carl Rogers, John Dewey, Paulo Freire e as ‘tais’ das tendências pedagógicas. As opções pelas escolhas da nossa vida são concretizadas por muitas pequenas escolhas que temos que fazer todos os dias. Ao fim dessa disciplina tinha que escolher uma “corrente pedagógica” do roll de Luckesi, para o trabalho final. Escolhi Paulo Freire. Guardo até hoje, em folhas já amareladas, o trabalho final da disciplina, batido à máquina. 

A conversa com Freire, a potência de sua formulação “a educação é um ato político”, me fizeram escolher esse caminho de vida de professor, de educador. Convicto de que tinha conseguido compor o político com minha vida, mudei-me do bacharelado para a licenciatura. 

Mas seguia, ainda, uma “dupla vida de Véronique”. De um lado, as ciências, particularmente a física. De outro, a filosofia, e a política, enquanto formas de vida. A composição que buscava só foi se completar um pouco mais tarde… Chegarei lá.

Compartilhando com amigos essa das minhas duas paixões, a política, agora com as ideias de Freire, fui convidado um dia para acompanhar um grupo de estudantes de jornalismo da PUC-Campinas, num projeto de extensão que visava a construir um jornal comunitário com uma comunidade de Mauá, o Jardim Oratório, uma das inúmeras regiões economicamente muito pobres da grande São Paulo. Convidaram-me porque nesta comunidade havia um projeto de alfabetização de adultos baseado em Paulo Freire, o que estava buscando vivenciar. 

Minha paixão, meu entusiasmo, esta minha alegria menina, fizeram-me levar um gravador de fita K-7, um poema de Bertold Brecht xerocado e ampliado numa folha sulfite, para me sentar com a profa. Adriana, que conheci quando cheguei no Jardim Oratório, e seus estudantes, todos mais velhos e mais velhas do que eu, a maioria mulheres, num barraco de chão batido, que me lembro de sentir e ouvir o vento que atravessava algumas de suas frestas entre as madeiras. Perdi a fita K-7, infelizmente, mas lembro da leitura feita pelos estudantes, passando meu xerox de mãos em mãos, em torno da mesa. Adriana saía de Santo André, e pelo então chamado trem de subúrbio, chegava a Mauá todos os sábados e domingos há mais de um ano para aqueles encontros. 

Escolhemos coisas na vida, mas certamente você já teve a sensação de que a vida escolhe algumas coisas para compor nossas escolhas. Passando do bachelarado para a licenciatura, avancei nas disciplinas, assim como por outras experiências cujo espaço não me permite relatar aqui, e cheguei à disciplina Didática, ministrada por uma professora, Maria José P. M. de Almeida, formada em Física. Essa professora me apresentou  o lado político do ensino escolar da Física. Como certa fisica escolar prática contribuía para compor a desigualdade social.  Ela também me ajudou a compor o que eu buscava. E me apresentou um caminho a trilhar como professor-pesquisador: a leitura no ensino de física, o tema que escolhi para minha dissertação e para minha tese. Estavam compostas então minhas paixões, não sem um deslocamento, e novas composições. Compus, inspirado em suas pesquisas em andamento, leitura, ensino de física, política (a política da leitura e do acesso popular ao conhecimento da física, obstaculizado pelo excessivo e exclusivo uso da linguagem matemática) e o ser professor.  A política, no entanto, ganhava uma nova trilha. A trilha por uma noção, política, de discurso, quando conheci a vertente chamada ‘francesa’ da Análise de Discurso, pelos trabalhos de Eni Orlandi, a partir de Michel Pêcheux. Não  lembro de ter voltado a ler Paulo Freire no trajeto que se seguiu até os dias de hoje, até estas últimas duas semanas, quando o reencontrei no livro de Walter Kohan, “Paulo Freire, mais que nunca”.

O pensamento que Walter ali compõe, com o pensamento de Freire, com seus críticos, e com outros autores não-freireanos, passando por Foucault e Ranciere, não só reavivou alegrias das já inumeras escrivaninhas de meu trajeto, como me ajudou a ver o Freire que tem estado em toda minha trajetória, mesmo que ela tenha se inclinado pelos percursos pós-humanistas desde as leituras da análise de discurso na minha iniciação científicia educadora do início da década de 1990. E esta leitura do Freire em Walter, esta leitura da composição que o texto de Walter performata brilhantemente (daqueles livros que fazem você sair da escrivaninha e  tê-lo junto onde quer que vá para não parar de lê-lo), esta leitura se compõe com a sensação que tenho tido, eu leitor de livros, séries e filmes de ficção científica, de estar vivendo uma distopia na realidade dos dias de hoje. Eis a leitura do mundo sempre junto da leitura da palavra. 

Esta alegria de ter lido Walter nos últimos dias, de ter relido Freire com Walter, se compõe com as também muito recentes leituras da ficção científica de Octavia Butler, da sociobiologia ético-filosófica de suas histórias. A obra de Butler é um engajamento político que, pela literatura, questiona as hierarquizações das diferenças, produzindo desigualdades, e faz trabalhar a tensão das diferenças numa luta inescapavelmente coletiva pela vida. Uma luta que, para tal, pela vida, precisa necessariamente produzir com-posições.  

Poder ter alegrias para reler uma realidade que se aprofunda em tão tristes assombros diários, de um capitalismo neoliberal que aqui, e não só aqui, chega a negar aquilo que tem sido fundamental para si mesmo: a ciência, que serviria e tem servido também a projetos libertadores, em suas contradições… Poder ter alegrias para reler e reorientar ações numa realidade tão cruelmente distópica como a que estamos vivendo, em que a vida perdeu seu valor político, eis o que textos como os de Freire em Walter, de Walter com Freire, de Octávia com a ciência, da ciência em Octávia, me apresentam para compor novas esperanças. 

A minha composição, na composição que, não sem contradições, reorientações, desvios, retomadas, equívocos, tenho vivido como educador ao longo destes 30 anos como professor, me faz parafrasear Walter: ciências mais que nunca! Ciências que parecem, antes tarde do que nunca, estarem percebendo que precisam, elas mesmas comporem-se em e comporem mais diálogos, posto que elas são, também, produções políticas. 

Tenho escolhido contribuir, politicamente, para isso, pelas trilhas das linguagens em suas composições com as epistemologias, particularmente, as da física. Tenho escolhido contribuir, politicamente, para isso, dando visibilidade aos textos, na sua relação com as ciências e convicto de que sua invisibilidade no nosso campo, o das ciências da natureza, também é uma política. Política contra a qual tenho me esforçado para me engajar e construir minhas aprendizagens e meus ensinos, enfim, meus diálogos, nem sempre tranquilos, mas com essas sempre renovadas esperanças, com colegas, com estudantes, com o mundo.  

 

Conversaram comigo
Krzysztof Kieślowski. A dupla vida de Véronique. Filme. 1991. 

Octavia Butler. Despertar. Ritos de passagem. Imago. Trilogia Xenogêneses. São Paulo: editora Morro Branco, 2018.

Walter Kohan.  Paulo Freire, mais do que nunca: uma biografia filosófica. Belo Horizonte: Vestígio, 2019. 

 
Agradeço aos jornalistas Dalton Franklin Almeida e Ricardo Fontes Mendes pelo convite a conhecer a professora Adriana e seu trabalho Paulo Freire no Jardim Oratório.

Tags: diferençamemóriasPaulo Freire
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